" - Conhecemos os movimentos um do outro e por isso temos uma rotina. Gosto de estar presente quando ele acorda de manhã. Por vezes, estendo-me sobre o peito dele. Isso torna-o um pouco mais lento. E depois gosto de me deitar no canto do quarto, gritando como se estivesse terrivelmente ferido. Por vezes, lanço-me sobre ele de trás de alguma peça de mobília e ladro-lhe na cara. Durante as refeições, agacho-me ao pé do prato dele e respiro-lhe em cima da comida. Sou também capaz de me encostar a ele quando está de pé ou pendurar-me nele de alguma maneira. Também me esforço por bloquear a luz do sol sempre que posso. (...) Ah, não é bem assim. Estou a minimizar o problema, tentando gracejar.
- Seja o que for, parece horrível. Alguma vez lhe dá descanso?
- Não. Mas ele é astuto, por isso tenho de o vigiar. Pode parecer deprimido mas na realidade está a concentrar-se num livro. Quando o apanho a ler, sento-me ao lado dele e masco pedras. O som põe-no doido, absolutamente doido.
- E faz isso com toda a gente? - quis saber Esther.
- Toda a gente funciona de maneira diferente, por isso varia. - respondeu Black Pat.
Esther experimentou de súbito uma sensação desconfortável, uma apreensão incómoda. (...)
- Que é que me acontecia? Como ia saber?
Black Pat respondeu sem hesitação:
- Diga-me a senhora.
[...] "
página 49, livro Mr. Chartwell de autoria de Rebecca Hunt.
♥◘♥◘♥
Como já podem ter percebido, tenho andado a ler este livro e a anterior parte em específico ficou a matutar na minha mente. Até este momento a leitura era muito confusa para mim, não percebia o que estava a acontecer.
Situados em 1964, temos uma mulher que procura um inquilino novo para um quarto, uma viúva, uma colega de trabalho e seu marido, temos um cão monstruoso de 2 metros que fala, uma cadela (?), um presidente... Uma confusão. Nesta passagem e nas páginas seguintes, as peças começaram a interligar-se. É suposto ser um livro humorístico, mas parece revelar uma verdade muito mais séria e profunda. Aqui, eu pude ver uma representação disfarçada daquilo que é a depressão. Penso que Black Pat é a sua personificação. O emprego dele é precisamente fazer os outros sentirem-se mal, e esta descrição explica o trabalho que tem que fazer com a vítima atual. Tendo sido demonstrado desde o início a sua figura grotesca, esta personagem teve também direito a passagens leves e engraçadas - nas quais somos quase forçados a imaginar uma imagem completamente diferente da descrita, ou, por outras palavras, uma imagem muito menos horripilante onde nos parece ver diamantes em carvão. É uma personagem que mostra grande inteligência e astucia, lançando o bichinho da curiosidade desde o começo.
Tendo em conta o que disse até então, considero ser evidente que é uma forma um tanto realista de falarmos sobre a depressão. Há dias melhores que outros. Pode afetar qualquer pessoa, não importa o estatuto social. É um problema muito grave que na maioria das vezes é desvalorizado pelos doentes e a sociedade em geral - e penso que isto está tudo representado de forma subtil, escondida atrás da trama. Não sei como será a continuação da obra (ainda só li à volta de 1/5 ?), contudo, depois disto visualizo cada frase e cenário de forma completamente diferente à que olhava antes. Julgo estar mais atenta às entrelinhas. Creio que talvez tenha sido um erro Esther aceitar como companheiro de casa alguém que é potencialmente a personificação da Depressão, é um jogo perigoso. Só que ela não tinha como saber no que se estava a meter. Ele era feio, misterioso, mas tinha dinheiro e algumas boas maneiras. É como se... Como se ela fosse ser a próxima afetada. Abriu as portas para o caos instalar-se na sua própria casa. Surgiu um inquilino de forma inesperada, vem devagarinho, pé ante pé, instala-se nas nossas vidas e tudo está controlado, dá-se um dedo, uma mão, um braço... até que pooof! : a situação expande-se e toma dimensões descontroladas. Porém, talvez ela consiga tomar consciência do que aí vem, adaptar-se e aprender a viver da melhor maneira possível.
Seja o que for que aconteça daqui em diante, esta foi a minha interpretação dos eventos até então.
Para terminar, só gostaria de vos dizer que caso necessitem, por mais que as pessoas à vossa volta ou até vocês mesmos tentem minimizar o problema (sem terem formação suficiente para tal), não hesitem em procurar apoio psicológico profissional o mais rápido possível. Sei que é difícil, mas não percam as esperanças. A ajuda existe.
Até à vista!
Ani ~
Olá, Ani!
ResponderEliminarEu não conhecia esse livro, mas achei bem interessante a história e o tema. É difícil encontrar obras que falam sobre depressão de uma forma realista, mas com uma certa sensibilidade também. Espero que sua leitura esteja sendo boa; sua interpretação das metáforas me deu vontade de procurar o livro para entender melhor (já vou colocar na listinha até).
Buscar terapia é muito, muito, muito importante. Mesmo que os maiores efeitos não cheguem tão rápido, a conversa com alguém profissional e preparado é muito necessária e ajuda muito, de verdade.
Enfim, abraços!! ♡
Oie! Gracias por su comentario ehehe.
EliminarEste foi um livro que me marcou mesmo, e tento levar a ideia que me transmitiu comigo. Recomendo recomendo recomendo! Não digo que é perfeito, mas muda um pouco os horizontes e a maneira como olhamos para doenças mentais, e pelo menos a mim, ensinou bastante.
Abraços, Ani ♥